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Decolonizar a IA, decolonizai, decolonizar o conhecimento: entrevista com Lewis Gordon

Decolonizar a IA, decolonizai, decolonizar o conhecimento:
entrevista com Lewis Gordon

Entrevista realizada por Elen Nas

Comentário inicial:

Conheci Lewis Gordon na Conferência da Associação Caribenha de Filosofia (CPA) em 2021. Com a pandemia e a conferência totalmente virtual, a sala de “bate-papo” nos horários intermediários às sessões se tornou unificada e, em um dado momento peguei meu ukulele e toquei uma canção. Lewis então mostrou os instrumentos ao seu redor e começou a tocar junto. Outros acadêmicos com habilidades musicais também se juntaram e foi absolutamente divertido ter este momento de integração quando as interações sociais estavam limitadas ao mundo virtual.

Lewis Gordon é um filósofo americano da Universidade de Connecticut que trabalha nas áreas de filosofia africana, existencialismo, fenomenologia, teoria social e política, pensamento pós-colonial, teorias de raça e racismo, filosofias de libertação, estética, filosofia da educação e filosofia da religião. É autor de diversos livros, sendo os mais recentes, “Freedom of Black Consciousness” (2022), “Freedom, justice and decolonization” (2021), “Geopolitics and Decolonization: Perspectives from the Global South”(2018).

A partir do meu ingresso como pósdoc na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, passei a coordenar, sob a supervisão do Catedrático Virgílio de Almeida, um grupo focado na discussão sobre preconceitos (racismo, misoginia e extremismo) dentro da interação humano-computador.

Eu já pesquisava tecnologia dentro dos debates interdisciplinares nas artes, design e bioética, onde toda discussão está alinhada com as questões da decolonialidade, que é também uma discussão sobre diversidade cultural, desafios para uma transdisciplinaridade, questões de inclusão, pluralidade de pensamento e quebras de paradigma na ciência, educação e sociedade.

Sendo assim, dentro do posdoc o tema da decolonialidade emergiu para mim como uma urgência que não poderia mais adiar. Já havia participado no ano anterior do Mozilla Festival onde se propunha decolonizar o futuro da IA (Inteligência Artificial) e a minha fala foi sobre como co-criar o meta-mundo provendo este mundo com descrições densas das nossas experiências cotidianas com o conhecimento moldado por algorítmos. Popular este mundo com nossas visões e imagens sobre as coisas que se quer categorizar. Desse modo, propus que o nosso tema dialogue com o modelo inspiracional em formato de plataforma chamado ‘decolonizai’.

A partir daí iniciamos discussões baseadas em revisões de literatura e, ao pesquisar mais sobre referências de decolonialidade do conhecimento e tecnologia nas redes me deparei novamente com Lewis Gordon, comecei a assistir mais suas palestras e ler seus livros, para finalmente convidá-lo a falar um pouco nesta entrevista, ocorrida em 27 de janeiro de 2023 via Zoom, planejando disponibiliza-la em formato de podcast.

Iniciamos ajustando problemas técnicos e falando de assuntos gerais, de modo que cortei boa parte da minha fala inicial. Porém preciso situar, porque quando o Lewis responde ele comenta alguns tópicos desta fala inicial que foi cortada, como por exemplo a questão de no Brasil haver uma discriminação diferenciada nos tons de pele que faz com que pessoas da mesma família sejam classificadas como brancas, pardas e pretas, que é o caso da minha família. E também é o caso da família do Lewis, mas ele comenta que, se esta mesma distinção de referências étnicas não ocorre na família dele, a divisão é, de um modo geral, também uma consequência do colonialismo.

A transcrição e subsequente tradução dos áudios mantidos na versão final do PodCast segue abaixo.
Como a entrevista foi longa e a edição dos áudios, comentários e transcrições são novas imersões no conteúdo que demandam tempo e reflexão, optei por disponibilizá-la em partes separadas e somente após a última parte publicada irei fazer uma versão final em formato de artigo.

A revisão da transcrição gerada automaticamente pelo Zoom, além de requerer correções da transcrição, transparece alguns erros gramaticais e de construção de frase que são os tropeços de quem se comunica em outra língua.

Episódio 1: O colonialismo e a mentira

Elen: Lewis Gordon. Muito obrigado por aceitar o convite para falar conosco sobre a colonização do conhecimento.

Uma das coisas é, se temos um conhecimento totalmente colonizado, como podemos descolonizar o espaço web, as tecnologias em si, o desenvolvimento de tecnologias e etc.?
Primeiro, você pode fazer sua introdução sobre o que gostaria de dizer inicialmente. Gostaria de lhe fazer perguntas sobre sua trajetória com as questões que você trouxe com a colonização da filosofia e os desafios que encontrou quando está no espaço acadêmico.

Eu também, como mestiça, o que é muito comum no Brasil, percebo que não me identifico com esse saber (o saber colonizado) e acho que temos desafios na educação.

Temos questões como, por exemplo, como os indigenas vão para a escola, e como eles se encaixam no conhecimento, e como suas capacidades serão julgadas por sua adequação dentro desse conhecimento, e o conhecimento que eles já possuem será desvalorizado.

Estou falando de indígenas porque, em 2020, eu estava vendo alguns filmes relacionados a indígenas na América, por exemplo. Portanto, eles têm uma diferença de idioma; eles crescem com sua linguagem. Então, quando eles vão para o sistema educacional, eles têm dificuldade de aprender e são julgados por isso, então eu acho que isso é um exemplo de como a gente tem certas hierarquias no conhecimento
onde as pessoas assumem que você precisa ir para as etapas 1, 2 e 3. Quando elas encontram alguém de uma cultura, formação etc. diferente, elas não levam em consideração que essa pessoa traz o conhecimento consigo mesma, e eu nem estou falando de racismo. Mas esse é um tipo de racismo também porque o racismo está embutido no conhecimento de uma forma que você dá mais valor a um tipo de conhecimento do que a outros tipos.

É uma grande introdução. Tenho lido e visto todas as coisas que você está trazendo sobre essas questões de tecnologia e conhecimento em si.

Lewis Gordon: Primeiro obrigado. E digo “obrigado” porque sei ler português e estou familiarizado com os diferentes tipos, mas porque não aprendi a falar.
Você está sendo muito hospitaleira. E você foi muito gentil em permitir que eu fosse entrevistado em inglês. Então eu agradeço por isso.
Agradeço também aos ouvintes ou telespectadores por sua hospitalidade, por sua graciosidade em se envolver com minhas ideias.
E embora existam outras línguas que eu leio e posso trabalhar eventualmente, em algum momento vou desenvolver uma melhor compreensão de como me comunicar verbalmente em português.
É que não estou aí com tanta frequência e a pandemia, como vocês sabem, afetou os horários que eu iria visitar.
Então eu começo assim.
Em segundo lugar, o que se deve ter em mente, porque você levantou a questão da mestiçagem, dos tons claros, aos pardos e negros retintos, estas são categorias coloniais e são usadas também nas ilhas do Caribe, na Austrália e no Pacífico Sul. Assim como em todo o sul da Ásia.
O próprio fato de as pessoas estarem usando esses termos é um absurdo. Seu irmão (classificado como pardo) e você (classificada como branca) são uma família.
A minha família, uma típica família negra, por exemplo. A família se chama negra, tem pessoas de tonalidades diferentes mas não estaríamos listados como se fôssemos de raças diferentes.
Meu irmão do meio tem a sua cor de pele. Meu outro irmão é um pouco mais claro que eu, e também tenho parentes, da minha cor, e alguns mais escuros. Meus filhos, um dos meus filhos é como a sua cor, a sua cor de cabelo. E minha filha tem olhos escuros de carvão, e ela é clara, e tem o meu cabelo.
Em outras palavras, pessoas são pessoas.

Agora estamos realmente falando sobre designação racial.
Mas se vamos mais longe, vou começar dizendo algo curto.
E é isso que devemos lembrar que o colonialismo é uma mentira.
O que o colonialismo faz é impor a um povo uma versão do mundo que tenta convencê-lo de que deve ser dominado, explorado, abusado.
Que eles são inferiores, eles são menos.
Você vê? Não é assim que as pessoas normalmente vivem.
Mas não é apenas uma mentira para as pessoas que são dominadas. Também é mentira para o dominador convencer as pessoas de que elas são inferiores a você.
Você deve se convencer de que é superior a eles e para isso é preciso criar conceitos, ideias, formas de pensar que também são falsas.

Mas você deve fazer-se acreditar que eles são verdadeiros. Eu chamo isso de má-fé. Má-fé é quando você se faz acreditar em uma falsidade agradável para evitar uma verdade desagradável ou horrível.

A terrível verdade é que essas coisas horríveis estão sendo feitas às pessoas e que as pessoas que chamamos de mestres ou superiores, o que quer que seja, são pessoas como todo mundo. Elas comem, dormem, defecam.
Elas têm desejos; elas têm esperanças, elas têm sonhos.

E elas também têm limites. Mas se você se convence de que é intrinsecamente superior às outras pessoas, acredita que não tem limites. E isso faz parte, né? Para explicar por que a construção da negritude levou à anti-negritude.
Isso ocorre por causa do sistema de valores que diz que para ser valorizado você não deve ter limites e, portanto, o mundo da negritude é visto como limite, e o limite final é a escravidão. E uma construção chamada brancura é vista como ausência de limite. O que significa que, para ser branco, você pode fazer o que quiser.
Isso cria a noção de que ser branco é desejável. Agora, é assim que o racismo está ligado ao colonialismo.

Mas você vê, historicamente, houve muitas colônias antes do que chamamos de colonização euro-moderna.
Se olharmos para o antigo Kemet ou Egito, ou olharmos para a Síria, olhamos para o Império Romano. Todas essas coisas. Eles tinham seus problemas. Houve colonização, foram coloniais, mas a diferença entre eles e o mundo em que vivemos é que o mundo em que vivemos trouxe uma antropologia especial para sua colonização.

Você vê, em muitas outras sociedades. Embora eles estivessem explorando e colonizando pessoas, havia uma sensação de que as pessoas a quem eles estavam fazendo isso eram seres humanos. Havia um processo de ter pertencimento humano. Em outras palavras, qualquer um poderia se tornar um cidadão. Havia um monte de coisas que alguém pode se tornar.

Mas, novamente, isso é muito simples porque existem muitas sociedades nas quais as mulheres, por exemplo, eram tratadas de tal forma que eram como escravas ou propriedades. E então, haviam sociedades em que as mulheres não eram tratadas dessa maneira. Mas algumas dessas sociedades foram colonizadas. E uma forma de patriarcado foi imposta a elas.

Então eu começo falando de mentira, porque quando a gente, uma das mentiras é a gente falar de gente
de forma redutiva ou homogênea.

Precisamos trazer à tona a complexidade do que as pessoas são quando falamos sobre mulheres, quando falamos sobre gênero, quando falamos sobre raça, quando falamos sobre sexualidade, quando falamos sobre classe, todas essas coisas operam ao mesmo tempo.

E a mentira que os dominadores contam é basicamente que eles são perfeitos. E o seu colonialismo moderno, que é o contexto do qual estamos falando, criou uma noção de que algumas pessoas eram perfeitas por serem, digamos, cristãs. Perfeito, por ser, digamos, masculino. Perfeito por ser, digamos, branco. E perfeito por ser, por exemplo, rico.

Então. e há mais. Mas se juntarmos o capitalismo. Cristianismo, patriarcado e raça. Então temos com ele para fazer aqueles trabalhos. Temos que mentir que essas construções individuais são como as pessoas realmente são.
Então é isso que temos que falar sobre aqueles a quem se conta uma mentira e aqueles que mentem para si mesmos.

Transcrição do Inglês:

Elen: Lewis Gordon. Thank you very much for accepting an invitation to talk to us about the colonization of knowledge.

One of the things is, if we have a knowledge that is totally colonized, how can we decolonize the web space, the technologies itself, the development of technologies and etc.?

First, you can give your introduction for what you would like to say at first. I’d like to ask you questions about your path with the questions you brought up with the colonization of philosophy and the challenges you found when you are in the academic space.

I also, as a mixed person, which is very common in Brazil, I realize that I don’t identify with this knowledge (the colonized knowledge) and I think we have challenges in education.

We have questions like, how indigenous people, for example, go to school, and how they fit in the knowledge, and how their capacities will be judged by their fitness inside this knowledge, and the knowledge they already have will be undervalued.

I’m talking about indigenous because, in 2020, I was seeing some movies related to indigenous people in America, for example. So they have a language difference; they grow with their language. So, when they go to the educational system, they have difficulty to learn and are judged by this, so I think this is an example of how we have certain hierarchies in knowledge where people assume that you need to go to steps 1, 2, and 3. When they meet someone from a different culture, background, etc., they don’t take into consideration this person brings the knowledge with himself or herself, and I’m not even talking about racism. But this is a type of racism as well because of how racism is embedded in knowledge in a way that you give more value to one type of knowledge over other types.

It’s a big introduction. Just to let you know, I’ve been reading and seeing all things you’re bringing up to these questions of technology and knowledge itself.

Lewis Gordon: Well. Thank you. First obrigado. And I say obrigado because I can read Portuguese and I’m familiar with the different kinds, but because I did not learn to speak it.

You are being very hospitable. And you’ve been very kind to enable me to be interviewed in English. So I thank you for that.

I thank also the listeners or viewers for their hospitality, for their graciousness to engage with my ideas.
And although there are other languages that I read and can work in eventually, I would develop a better understanding of how to communicate verbally in Portuguese.

It’s just that I am not there as often and the pandemic, as you know affected the times I would visit.
So I start that there.

Second, the thing to bear in mind, because you brought up the question of mixture and light and brown, and so forth.

These are colonial categories and they’re used also in the Caribbean Islands. They’re used in Australia and the South Pacific. They used across South Asia.

The very fact that people are using these terms it’s absurd. Your brother and you are family.

My family, a typical black family, as an example. The family is called black, have people of different shades but we wouldn’t be listed as if we’re different races.

My brother, my middle brother, is your complexion. My other brother is a little lighter than me, and I also have relatives, of my color, and some more darker. My children, one of my sons is like your color, your color of hair. And my daughter has dark charcoal eyes, and she’s light, and she has my hair.
In other words, People are people.

Now, so we’re really talking about racial designation there. But if we’re going to go further I’m going to begin by saying something short. And that is the thing to remember colonialism is a lie.

What colonialism does is to impose upon a people a version of the world that attempts to convince them that they should be dominated, exploited, abused. That they are inferior, they’re less.

You see? That’s not the way people ordinarily live. But it’s not just a lie to the people who are dominated. It’s also a lie to the dominator to convince people that they are inferior to you.

You must convince yourself you’re superior to them and to do that requires creating concepts, ideas, ways of thinking that are also false.

But you must make yourself believe them as true. I call that bad faith. Bad faith is when you make yourself believe a pleasing falsehood right to avoid a displeasing or horrible truth.

The horrible truth is that these are horrible things being done to people and that the people we call masters or superior, whatever, are near people just like everybody else. They eat, sleep, defecate.
They have desires; they have hopes, they have dreams.

And they also have limits. But if you convince yourself you are intrinsically superior to other people you believe you have no limits. And this is part of it, right? To make why the construction of blackness led to anti-blackness.

This is because of the value system that says to be valued you must have no limits and so the world of blackness is looked at as limits, and the ultimate limit is enslavement. And a construction called whiteness is looked at as an absence of limit. Which means, to be white, you can do whatever you want.
That creates the notion that white is desirable

Now, that’s how racism is linked to colonialism.

But you see, historically, there’ been many colonies before what we call euro-modern colonization.
If we look at ancient Kemet or Egypt, or we look at a Syria, we look at the Roman Empire. All of these things. They had their problems. There were colonization, they were colonial, but the difference between them and the world we live in is that the world we live in brought special anthropology to its colonization.

You see, in many other societies. Although they were exploiting and colonizing people, there was a sense that the people they were doing it to were fellow human beings. And there were processes
of having human belonging. In other words, one could become a citizen. One could be a lot of things one could become.

But again, that’s very simple because there are many societies in which women, for example, were treated in such a way that women were like a slave or property.
And then, there were societies in which women were not treated that way. But some of those societies were colonized. And a form of patriarchy was imposed on them.

So I begin by talking about lies, because when we, one of the lies is for us to talk about people
in reductive or homogeneous ways.

We need to bring out complexity of what people are when we talk about women, when we talk about gender, when we talk about race, when we talk about sexuality, when we talk about class, all those things operate at the same time.

And the lie those who dominate tell is basically that they are perfect. And your modern colonialism, which is the context we’re talking about created a notion that there were some people who were perfect by virtue of being, say, Christian. Perfect, by being, say male. Perfect by being, say, white. And perfect by being, for example, rich.

So. and there is more. But if we bring together capitalism. Christianity, patriarchy, and race. Then we have with it to make those work. We have to tell a lie that those individual constructions are the way people really are.

So that’s the thing we have to talk about those to whom a lie is told and those who lie to themselves.

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